Terceirização, Pejotização e os Precedentes Vinculantes do Supremo Tribunal Federal

Publicado em: 6 de janeiro de 2023

 

O fenômeno da terceirização trabalhista sempre foi um assunto dos mais espinhosos para advogados, juízes, empresários e trabalhadores. Durante muitos anos vigeu o entendimento de que a terceirização somente teria lugar para as atividades que não fossem aquelas relacionadas ao objeto da empresa (Súmula n.º 331 do Tribunal Superior do Trabalho).

Contudo, tal posição, ao longo dos anos e diante das novas formas de divisão do trabalho, foi mostrando-se anacrônica sobretudo diante da revolução na sociedade trazida pela economia digital.

Assim, em 2014, a ABAG – Associação Brasileira do Agronegócio ajuizou Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF 324) contra a súmula n.º 331 do TST, que, na prática, gerava enorme insegurança jurídica e acabava por limitar, de modo inconstitucional, a terceirização, uma vez que i) impedia que a tomadora de serviço empregasse em seus quadros empregado para desenvolver as mesmas tarefas de funcionário terceirizado; ii) confundia conceitos acerca do que seria atividade-fim, atividade-meio e atividade essencial para o negócio; iii) reconhecia a subordinação entre o tomador de serviço e o empregado terceirizado em caso de orientação do trabalho; iv) pressupunha fraude no caso de existência de exclusividade no fornecimento de mão-de-obra, além de inúmeras outras interpretações advindas da referida súmula.

Em 2016 o Supremo Tribunal Federal deu ao RE n.º 958.252 repercussão geral para que se consolidasse um único entendimento acerca da terceirização.

Com a reforma trabalhista de 2017, o tema ganhou ainda mais relevância porque, pela primeira vez, a terceirização era efetivamente tratada por lei que, no caso, trouxe permissão em sentido oposto à posição consolidada pela Justiça do Trabalho.

Diz-se a primeira vez sem se esquecer, contudo, da Lei da Lei Geral das Telecomunicações, que embora tivesse previsão de terceirização da atividade-fim para as empresas desse segmento, nunca teve maior relevância para o judiciário trabalhista, que sempre se pautou pela Súmula n.º 331 do TST.

No entanto, mesmo com a Lei n.º 13.429/2017, o Tribunal Superior do Trabalho manteve firme sua posição restritiva quanto à terceirização, ao menos até o dia 30/08/2018, quando se fixou a tese de relatoria do Ministro Luís Roberto Barroso, no julgamento da ADPF n.º 324, que “é lícita a terceirização de toda a atividade, meio ou fim, não se configurando relação de emprego entre a contratante e o empregado da contratada.”

Ainda na mesma toada foi o julgamento do RE n.º 958.252, de relatoria do Ministro Luiz Fux, no qual se firmou a de que “é lícita a terceirização ou qualquer forma de divisão do trabalho em pessoas jurídicas distintas, independentemente do objeto social das empresas envolvidas, mantida a responsabilidade subsidiária da empresa contratante.”

Embora tenham nascido em meio ao questionamento da Súmula n.º 331 do TST, os reais contornos, limites e impactos das decisões acima citadas ainda hoje reverberam no meio trabalhista, com especial destaque para o julgamento da Reclamação n.º 47.843.

Nesta Reclamação, questionou-se que as decisões vinculantes do Supremo Tribunal Federal acerca da terceirização abrangeram, também, a chamada pejotização, já que esta seria espécie da qual aquela é gênero.

Tal dimensão se revelou mais clara no voto do Ministro Luís Roberto Barroso:

“se nós estivéssemos diante de trabalhadores hipossuficientes, em que a contratação como pessoa jurídica fosse uma forma de frustrar o recebimento do fundo de garantia por tempo de serviço ou alguma outra verba, aí eu acho que uma tutela protetiva do estado poderia se justificar, mas diante de trabalhadores que não são hipossuficientes e que fazem uma escolha esclarecida por um modelo de contratação, eu gostaria de lembrar que não são só médicos, hoje em dia, que os professores são frequentemente contratados, assim os artistas são frequentemente contratados, assim os locutores são frequentemente contratados, e não são hipossuficientes, são opções permitidas pela legislação.” 

Por assim, entenda-se mediante pessoas jurídicas unipessoais, ou seja, sem sócios e outros colaboradores, apenas o seu titular cedendo a sua mão-de-obra para outra pessoa jurídica, nos termos do art. 129 da Lei n.º 11.196/05, cuja constitucionalidade foi explicitada na ADC n.º 66.

EMENTA: AÇÃO DECLARATÓRIA DE CONSTITUCIONALIDADE. REGIME JURÍDICO FISCAL E PREVIDENCIÁRIO APLICÁVEL A PESSOAS JURÍDICAS PRESTADORAS DE SERVIÇOS INTELECTUAIS, INCLUINDO OS DE NATUREZA CIENTÍFICA, ARTÍSTICA E CULTURAL. COMPATIBILIDADE CONSTITUCIONAL. LIVRE INICIATIVA E VALORIZAÇÃO DO TRABALHO. LIBERDADE ECONÔMICA NA DEFINIÇÃO DA ORGANIZAÇÃO EMPRESARIAL. AÇÃO JULGADA PROCEDENTE.

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Art. 129. Para fins fiscais e previdenciários, a prestação de serviços intelectuais, inclusive os de natureza científica, artística ou cultural, em caráter personalíssimo ou não, com ou sem a designação de quaisquer obrigações a sócios ou empregados da sociedade prestadora de serviços, quando por esta realizada, se sujeita tão-somente à legislação aplicável às pessoas jurídicas, sem prejuízo da observância do disposto no art. 50 da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 – Código Civil.

Ainda que vinculantes as decisões sob análise, não se pode esquecer da natural resistência do poder judiciário trabalhista em rever sua jurisprudência, sobretudo em temas que lhe são tão sensíveis como a terceirização e a pejotização diante dos pilares da relação emprego estatuídos no art. 3.º da Consolidação das Leis Trabalhistas.

Para boa parte dos magistrados trabalhistas, a simples presença dos elementos de emprego automaticamente atrai o reconhecimento dessa natureza de vinculação e todos os direitos trabalhistas-previdenciários daí advindos, de modo indistinto e sempre com base na presunção da existência de fraude.

E é este o cerne da mudança trazida pelas decisões da Suprema Corte: pode haver uma relação contratual com pessoalidade, habitualidade, alteridade e com subordinação que não seja um vínculo empregatício? Presentes os elementos do art. 3.º da CLT, será sempre uma relação de trabalho? As partes podem escolher outra forma de contratação que lhes seja menos onerosa do ponto de vista tributário?

Ao que nos parece, a justiça do trabalho começou a assimilar a dimensão trazida pelos precedentes vinculantes da Corte Constitucional, como fica bem evidenciado no julgamento da ATOrd 0100098-91-2022.5.01.0511:

“De início, destaco que não restou demonstrado nos autos que a forma de contratação foi imposição da empresa de modo a burlar direitos trabalhistas, não se podendo presumir o desinteresse do autor por tal arranjo contratual, haja vista

que permaneceu prestando serviços para reclamada por mais de 4 anos, com percepção de contraprestação pecuniária elevada e demais benefícios, não se podendo presumir abuso ou fraude na contratação. 

A prova documental corrobora a tese de defesa, pois o contrato foi assinado por pessoa plenamente capaz (reclamante, como representante legal da pessoa jurídica contratada), com formação acadêmica e ciente sobre os termos que foram acordados para a prestação de serviços, tendo aceitado, à época, as condições estabelecidas pelo contratante. 

De mesmo modo, a prova testemunhal demonstrou se tratar de empregado de alta capacitação e especialista na área de atuação, responsável pela implementação de sistema de faturamento da empresa reclamada. 

Não há, pois, razoabilidade em reconhecer fraude no ajuste firmado, e, por corolário, desconstituí-lo, pois, repita-se, o autor se insere na categoria de profissionais prestadores de serviços que possuem alto grau de instrução, ampla possibilidade de negociação, inclusive para decidir sobre a modalidade de contratação e avaliar a conveniência da prestação de serviços por meio de modalidade contratual distinta da relação de emprego típica, não podendo se valer da alegação de vício de vontade para invalidar o contrato firmado.

De plano já se percebe que a presunção da ocorrência de fraude em virtude da mera contratação em suposto desalinho com a CLT é posição que foi superada na decisão, que afirmou a necessidade do intuito de burlar direitos trabalhistas para prejudicar a parte contrária.

Para melhor contextualizar, o Reclamante era profissional especializado em TI, com salário elevado, percepção de benefícios e que contou com aumentos e promoções ao longo dos anos de trabalho.

Avançando na decisão, nota-se que a sua fundamentação foi, como não poderia ser diferente, em total alinhamento com a posição do Supremo Tribunal Federal:

“Nesse sentido, o STF no julgamento da ADC 66 declarou constitucional o artigo 129 da Lei 11.196/2005, que permite a prestação de serviços intelectuais, em caráter personalíssimo ou não, por meio da constituição de uma pessoa jurídica, cuja decisão se alinha com o precedente estabelecido no julgamento da ADPF 324, no qual se entendeu como lícita a terceirização irrestrita das atividades empresariais.

Por sua vez, no julgamento do Recurso Extraordinário nº 958252, com repercussão geral reconhecida (Tema 725), o Supremo fixou tese no seguinte sentido: “É lícita a terceirização ou qualquer outra forma de divisão do trabalho entre pessoas jurídicas distintas, independentemente do objeto social das empresas envolvidas, mantida a responsabilidade subsidiária da empresa contratante”.

Por fim, em recente julgamento da RCL 47843, a 1ª Turma do STF, por maioria, considerou lícita a modalidade de contratação de médicos como pessoas jurídicas na prestação de serviços para um hospital, fixando-se a tese de que profissionais liberais podem ser contratados na denominada “pejotização”, tratando-se de escolha ​realizada por pessoas com alto nível de formação, que não se enquadram na situação de hipossuficiência, exatamente como no caso em análise.  

A tese fixada na Reclamação estabelece que é “lícita a terceirização por ‘pejotização’, não havendo falar em irregularidade na contratação de pessoa jurídica formada por profissionais liberais para prestar serviços terceirizados na atividade-fim da contratante”.

A atual posição do Supremo Tribunal Federal acaba, também, por atingir uma indústria formada por trabalhadores de alto nível e advogados em busca de honorários que ajuízam ações requerendo o reconhecimento de vínculo empregatício, e os seus consectários financeiros, como se fossem vítimas de fraude em seus direitos mais básicos, como se tivessem sido duramente prejudicados, esquecendo-se de toda a economia tributária feita ao trocarem uma alíquota de 27,5% de Imposto de Renda Pessoa Física por uma que costuma não chegar a 10% dentro de pessoas jurídicas optantes pelo Simples Nacional.

Este fenômeno, consequência da não aplicação do princípio da igualdade material, resulta num protecionismo estatal a quem não precisa, como bem salientou o Juiz do Trabalho Otávio Calvet em artigo:

“Aplica-se a proteção criada para o trabalhador hipossuficiente, lembrando que a construção histórica do Direito do Trabalho levou em consideração essa gama de trabalhadores, para quem dela não necessita. Cria-se, assim, uma fábrica de milionários.

Essa percepção, que o primeiro grupo prefere não ver, ou apenas elogiar a roupa invisível do rei, gera uma enorme distorção, pois direitos básicos criados para garantir o mínimo existencial, a dignidade da pessoa humana do trabalhador, se transformam em panaceia de uma riqueza imoral.

A fórmula é simples. O trabalhador de alto nível e renda prefere a contratação através de pessoa jurídica porque, na sua contabilidade, ganhará muito mais com um regime tributário simplificado, recolhendo a própria previdência como bem entender, percebendo do tomador dos serviços o valor cheio diretamente através de nota fiscal.

Após alguns anos utilizando de tal expediente, que, repito, lhe é favorável, ao término dessa relação jurídica busca a Justiça do Trabalho sob as vestes de um trabalhador hipossuficiente, vilipendiado em seus direitos. Ganhando o vínculo, consegue o passe mágico para amealhar alguns milhões que, pela via normal, jamais conseguiria obter, a iniciar pelo fato de que seu salário, tivesse o vínculo de emprego sido pactuado, jamais seria naquele mesmo valor, pois a empresa precisaria reduzir o montante para fazer frente a todos os encargos tributários e trabalhistas.

Utiliza-se, portanto, de uma proteção duramente conquistada para um tipo de trabalhador com nítido dolo de aproveitamento. E escolher ficar cego para tal realidade é ainda duplamente constrangedor.”

No entanto, mesmo com a existência de precedentes vinculantes no Supremo Tribunal Federal, as Empresas e advogados trabalhistas que litigam a favor da licitude da contratação por meio de pessoas jurídicas não devem encontrar facilidades diante do judiciário, sobretudo nas instâncias ordinárias.

Em pesquisa feita em 2019 pela Associação dos Magistrados do Brasil, mais da metade dos juízes de 1ª instância e dos desembargadores afirmou que o magistrado poderia decidir sem se pautar pelo sistema de súmulas e precedentes vinculantes, bem como que tal sistema afeta a sua independência na interpretação e aplicação das leis.

Embora absurda tal situação, ela é concreta e real, o que força o advogado trabalhista que atua em favor de empresas a se manter constantemente atualizado com as posições do Supremo Tribunal Federal acerca do direito do trabalho e a, desde o início de sua defesa, traçar um caminho que lhe permita ter a aderência necessária aos precedentes vinculantes para que, se preciso for, se socorrer em um Recurso Extraordinário, Reclamação ou até mesmo Ação Rescisória para que possa atuar em prol da segurança jurídica.

A reforma trabalhista legislativa já aconteceu, agora é tempo da reforma trabalhista jurisprudencial, e sairá na frente quem souber melhor entendê-la.

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